Imagine chegar ao banco para sacar a aposentadoria e descobrir que, no sistema, você já faleceu. A cena parece absurda, mas tornou‑se mais comum depois que o Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça, posteriormente ajustado pelo Provimento 153/2023, passou a exigir certidões civis emitidas há no máximo noventa dias para praticamente todos os atos administrativos. A obrigatoriedade fez muita gente “revisitar” a própria documentação e, nessa verificação, veio à tona um número crescente de registros de óbito indevidos — isto é, mortes lançadas pelo cartório em nome de pessoas que continuam vivas. A partir de casos que acompanhei na Defensoria Pública, como o do trabalhador rural cuja ex‑esposa o declarou morto para fraudar pensão e o da idosa que só descobriu o equívoco vinte e quatro anos depois, ficou claro que o problema não é pontual: a soma de homonímias, declarações incorretas, conferência frouxa de CPF ou RG e tentativas deliberadas de burlar o INSS gera um risco real de alguém ter a existência civil “apagada” sem saber.
Quando isso acontece, as consequências chegam em cascata. Benefícios previdenciários são suspensos, contas bancárias congelam, o CPF passa a constar como “cancelado por óbito”, documentos não podem ser emitidos, eleitor e passaporte ficam bloqueados e o constrangimento no atendimento público vira dano moral na certa. A frustração mais comum surge justamente no guichê do banco ou no caixa eletrônico, onde o segurado recebe a mensagem de que “benefício está bloqueado por óbito”. A partir daí, o caminho para reverter o erro exige agilidade. O primeiro passo é solicitar, no próprio cartório que lançou o óbito, uma certidão de inteiro teor para entender o que foi registrado e quais documentos o declarador apresentou. Em seguida, é indispensável reunir provas de que você está vivo — RG, CPF ativo, comprovante de endereço, fotos datadas, declarações de testemunhas — e ingressar com ação de retificação de registro civil, pedindo liminar para reativar CPF e benefícios enquanto o processo corre.
A quem cabe indenizar esse transtorno? O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 777 da Repercussão Geral, definiu que o Estado responde objetivamente pelos atos de tabeliães e registradores porque a atividade é delegada. Significa que você pode processar diretamente o ente público e não precisa provar culpa, bastando demonstrar o dano e o nexo de causalidade. Depois de pagar, o Estado move ação regressiva contra o cartório, que também pode ser acionado de forma autônoma — mas, nesse caso, a responsabilidade é subjetiva e exige prova de culpa ou dolo do oficial. Na prática, a escolha recai sobre estratégia financeira: contra o Estado o prazo prescricional é de cinco anos e o pagamento virá por RPV ou precatório; contra o cartório, são três anos e a execução tende a ser mais rápida, mas depende da demonstração de falha concreta.
Prevenir ainda é o melhor remédio. Manter dados atualizados no INSS e na Receita Federal, solicitar certidões de nascimento ou casamento a cada doze meses, digitalizar documentos originais e regularizar separações evitam brechas para fraudes. Se um parente falecer, exija que a declaração de óbito seja feita por familiar direto munido de toda a documentação, nunca por vizinhos ou conhecidos. E, se o inusitado acontecer, não perca tempo: vá ao órgão público competente, peça a certidão errada, protocole a ação de retificação com pedido de tutela de urgência e, se houve prejuízo, pleiteie indenização por danos morais. Afinal, ser dado como morto no papel é mais que um erro burocrático — é uma ameaça ao primeiro e mais fundamental dos direitos: o de existir.
Conclusão e recomendações
Estar vivo e ser dado como morto em documentos oficiais não é apenas uma falha: é uma ameaça direta ao direito mais básico de todos — o de existir.
Fique atento. Atualize seus registros. E, diante de qualquer irregularidade, busque orientação jurídica imediatamente.
Este material foi criado para prevenir e empoderar.
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E lembre-se: a vida civil começa com um registro — e também pode acabar com ele.
Nathally Costa Oliveira
Consultora Jurídica